Carregando...

Martins, Eduardo


Da modernidade na poesia às asas-deltas do êxtase Reflexões sobre palavra falta

Sinto que meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros.

Mário de Andrade

(Prefácio interessantíssimo)


Os poetas do nosso tempo são atores e testemunhas de uma contradição. Diz-se, por um lado, do inevitável transbordamento de fronteiras entre prosa e poesia, do des-limite dos subgêneros que torna quase indistinto tudo o que se queira chamar de poesia, prosa poética, ficção lírica, poema em prosa, etc., mesmo sem levar em conta aqui as relações da poesia com outras artes. Constata-se, por outro lado, como fator de distinção e como traço de uma suposta modernidade, certos aspectos de valor – e não de natureza – responsáveis por apartar a prosa e a poesia, atribuindo-se à primeira um certo viço (porque contemporâneo) e também uma condenação: sua culpa seria o despudor, a desfaçatez em face de uma congênita banalização. À poesia, por seu turno, se reservaria uma espécie de pedestal ilustrado em virtude de sua bem-falada tendência (do agora?) à sacralização, nunca demonstrada como traço próprio, mas como pseudo-explicação.


Por esse jogo de interesses, a prosa (sem abrir muito a mão de um pressuposto estético), pareceria mais inclinada ao paganismo das artes narrativas, podendo servir de base a outras linguagens. Completamente aclimatada ao cenário da convergência digital e das combinações de espaços e suportes (da fábula às tramas de palco e cinema, do e-book aos filmes para o celular) revelaria, logo na origem, a antiga distinção entre objetos de leitura e modos de ler mais afeitos ao papel dos espectadores inter-agentes, que não repudiam as marcações de cena, as coordenadas de tempo e espaço, os facilitadores de coerências, como nas tramas narrativas, e outros modos (como na poesia) comandados pela hesitação entre som e sentido e assim chamados meditativos, sensitivos, de apreensão transmixada (verbo-voco-visual), que aceitam sem problemas os socos no estômago e a imolação da lógica.


Com esta vaga introdução pretende-se situar o lugar de onde falamos. E deste lugar, espaço e discurso do instável, içar nas vagas agitadas do presente alguma hermenêutica que nos permita ao menos tangenciar a crise da literatura, não como abstração, mas como exercício pungente e atormentado de quem procura uma voz na multidão. Assim, porque se vislumbra na síntese da lírica contemporânea a razão de sua multivocidade. O interesse está em compreender como soa a voz de um poeta rondo-pernambucano no mar e rumor tumultuoso da literatura atual, e da poesia em particular, seja por suas estratégias criativas, pela relação com seus prógonos e coetâneos ou a partir dos meios e canais pelos quais se apresenta. Tratando-se de um autor, cuja obra circula especialmente em Rondônia ou a partir de Rondônia, seria importante saber, inclusive como esboço de reflexão sobre a literatura que se produz nesta parte da Amazônia, se estaria ele em compasso com o que se supõe dominante na lírica contemporânea e se, exatamente por seus traços particulares, ajudaria a descompor o mapa do presente, cujos pontos cardeais sempre coube à crítica estabelecer.</p> <p style="text-align: justify;">Do ponto de vista da crítica, interessa-nos evitar a monofagia dos discursos sobre a lírica recente. Movidos muitas vezes por falsas expertises letradas, tais discursos beiram o exibicionismo e servem apenas para dar forma à afetação de certos poetastros ciosos do ouro que tiram do nariz. Eles, via de regra filhos dos programas de pós-graduação, se diferem um pouco nos versos, são siameses no discurso e formam um adro de espelhos: estão muito próximos do altar, mas trazem como cruz e redenção as mesmas revistas, os mesmos blogs, o mesmo jogo narcísico e sínico em que o cicio da própria voz os satisfaz, deslumbra, cega e ensurdece. Um comportamento, aliás, só alimentado por quem aceita trair o próprio gesto criativo e descura de um preceito antigo, mas ainda válido, segundo o qual o artista incorporaria uma obsessão idiossincrática, buscando originalidade na dissonância e levando a termo o fato de que ser diferente seria não apenas um motivo de orgulho, mas uma condicionante à auto-superação; também o moto-contínuo e o desencanto da crise aludida. Não importa que contra isso existam as igrejas e que para alguns só sirvam as catedrais. Interessa-nos, como procedimento de leitura, olhar para o interior e para além do adro a fim de capturar os vários matizes e territórios da poesia recente e, com isso, mas sem voltar a ela, refletir sobre A palavra falta.</p> <p style="text-align: justify;">Considerado esse mar tumultuoso da poesia atual, Eduardo Martins é daqueles que se atira sem medo, ou pelo menos sem garantias, contra a impostura da mesmice, ainda que nela resvale, tal a opulência e ao mesmo tempo as incertezas nas faces acometidas: atemporalidade, representação da intimidade, reinterpretação literária e, fundamentalmente, os pontos de fuga de tudo o que se tem nomeado crise, mesmo que esses pontos (de fuga) sejam saídas para os abismos de si, do eu profundo, como diria Barthes, e da escrita, cuja techne retorna aos textos aquela equação entre a intenção literária e a estrutura carnal do autor. Como em quase toda a poesia digna produzida na última década, luta contra uma esfinge, mas nada há (ou planeja-se) para por em seu lugar. Caracteriza-se menos pela obsessão formal – aspecto mantenedor da tradição e facilmente alcançável hoje em sua razão mediana de “competência técnica”, dada a facilidade de acesso à informação – que pelas estratégias tensivas, tentativas e pontos de fuga por onde o poeta reinterpreta a história da literatura e busca seu caminho, sem cuidar, talvez, que esguelhar-se diante da crise da literatura é uma das formas de exercitá-la. </p> <p style="text-align: justify;">Com essa feição, sua poesia acaba por não tematizar a crise: segue seu curso sem organizar brigadas, sem levantar trincheiras, mas lançando-se sobre o perigo como o bêbado equilibrista que constrói seu trapézio sobre o nada. Exuberante, às vezes cheia de engenho e pronunciada falsa indiferença em relação aos dilemas da literatura contemporânea, parece apanhar a realidade com violência, inconsequentemente, despudoradamente, arrastando as metáforas à força para o leito impuro do poema, aonde se vai formando algo individualizado a partir da união aparentemente espontânea de elementos díspares. Poder-se-ia falar em confluência de paradigmas e ecos de leitura: do barroco, do romantismo, do simbolismo e de suas modulações na cultura. Alguns textos, como extensão carnal do autor, gritam mais do que mostram: são barrocos, elocutórios, retórico-persuasivos e situam-se no limite perigoso entre a verdade e a validade, entre o jogo conceptual e o jogo formal, onde apenas algumas obras – com todo o risco e senões – são capazes de acomodar as mistificações da intimidade, o negaceio das crenças e os meneios da memória. Outros poemas, obsedados no próprio eu, entrelaçam obliquamente a voz do autor e a representação lírica: são românticos, com emoções que transbordam à flor da pele, na garganta, nos gestos, como mística da vida e teatro da intimidade. Noutros, ainda, soam as notas da imprecisão, do sentimentalismo afetuoso, por vezes espiritualista, que ajudam a equilibrar a imponência particular do tom à simplicidade geral dos conceitos.</p> <p style="text-align: justify;">Não se trata, porém, de mero culto ao passado ou de promover à força, via memória íntima, a dissolução das utopias. Não se imagine, também, tratar-se de um exilado ante a força da poesia moderna. Trata-se de uma voz e um olhar que se alimentam da própria crise das utopias, quando sabe ou desconfia que o tempo presente é por excelência o da desmobilização. Trata-se de recolher para a mesa da literatura os acenos, gestos e toda voz (cruciante, interrompida ou silente), num processo nem sempre lúcido, preocupado em esconder a introversão e sempre vitimado pela nódoa da influência. Tal procedimento, aliás, não é nada novo, apenas exacerbado: o passado inteiro da humanidade foi construído sobre essa mácula; e ao poeta do nosso tempo, sem forças para atos ruidosos, cabe assimilá-la sem ressentimentos, já que a atividade literária acomoda-se cada vez mais ao sentido de retrospecto, recuo e retorno ao que se deve juntar a inventio e a interpretatio. Diria, então, que este é um daqueles livros interessados em (re) interpretar a retórica literária e o faz como pós, sem perder a pose: de um lado o reprocessamento e de outro a atualização de formas, numa espécie de decadence elegance que o torna entre moderno e extravagante. </p> <p style="text-align: justify;">O diálogo entre poesia e realidade, a representação social, pode ser pensada a partir do modo como se dão as reinterpretações do passado literário. Nessas representações, estão, além das exegeses de estilo a história da literatura e, por conseguinte, a história das influências e da falência da própria literatura, que chega a nossos dias roendo a própria corda. Se essas transformações são raramente incorporadas como temas e estrutura mimética, é porque há a consciência de que há mais verdade na forma do que na história, não sendo, pois, necessário, falar sobre algo que se representa a si mesmo. É assim, por exemplo – como indefinição –, que se manifestam conjuntamente os traços neocultistas e neoconceptualistas do autor: a reiteração de esquemas, as construções em ritornelo, os jogos de palavras e imagem, o tom solene, a clave lúdica da frase que brinca com os sentidos numa espécie de esconde-esconde verbal, como se pode perceber em poemas O vaso e O ceramista.</p> <p style="text-align: justify;">Mais do que aludir ao processo criativo, estes textos ilustram uma visão dialética e retorcida da realidade, utilizando-se, como de resto quase todo o livro, da estrutura do sermão. Lança-se mão de uma proposição; depois, de uma argumentação enfática auxiliada por ilustrações e, por fim, de uma conclusão persuasiva. O poeta escreve para dentro/ do vaso que não tem flora, são os dois primeiros versos de O vaso; e Uma peça quando outra/sempre diz mais que atrito, os primeiros versos do segundo poema. A partir de uma afirmação conceitual, nestes, como em outros momentos, passa-se à fase da argumentação que pode tender em uns para uma organização conceptual, como nas estrofes finais de Recado e, em outros, para o jogo verbal, fonêmico que extrai sentido do caráter impressivo das alternâncias sonoras. O que sai daí, representado às vezes por uma espécie de niilismo temático não é um mundo idealizado, mas dúbio, problemático, onde o culto da falta e da ausência se converte facilmente em substância de que sãos exemplos, A palavra falta, A outra sede e Figuras, cujos torvelinhos semânticos evidenciam as angústias do mundo e o não enquadramento do sujeito. Tudo são contradições imensas, não no sentido primário de incoerência, mas carência profunda e dúvida a ser experienciada, como se à moda de Descartes se duvidasse da existência daquilo que provem dos sentidos. Essas contradições, ou desassossego que o poeta parece exercitar sem medo, pratica-os, na verdade, pela impossibilidade de outras escolhas, num misto de síssifo e desavir existencial: paradoxos, antíteses, silogismos, tudo posto como se pronunciados em voz alta, de braços abertos como um arauto que quisesse incitar o leitor à briga ou acossar o próprio corpo para calar os demônios da alma. Para dissimular a dúvida há sempre algo de arroubo, intensa agitação, uma eloquência traduzida muitas vezes em verbalismo enfático; insuficiente, contudo, para esconder o conflito entre o ímpeto desmedido e as barreiras da razão. </p> <p style="text-align: justify;">Ainda de par com esse tom geral, de imagens que visam impressionar e comover, é possível notar aqui e acolá certos parentescos com as acrobacias formais e desafios à decifração de um Gregório de Matos e a presença do Antonio Vieira exibicionista, com seu verbalismo elocutório. Vem deste também o matiz patético, eivado de comoção trágica, ao que o poeta vai juntar certa nuance penumbrista herdada via Manuel Bandeira e alguns traços do romantismo intermédio, preocupado com a introspecção e com as aspirações pessoais. Tudo isso, porém, filtrado pelas leituras de formação, cujas fontes passam obrigatoriamente pelo nordeste e em especial pelos pernambucanos – de Manuel Bandeira a João Cabral de Melo Neto, de Carlos Pena Filho a Alberto da Cunha Melo. A pulsão modernista transita evidentemente de permeio, às vezes como uma estranha, mas com a função especial de conciliar dissonâncias e atualizar o discurso. E, se insistirmos mais num sequenciamento de gênese, não escapa o fato de o poeta ter ouvido e admirado os cantadores de embolada e repente, com seu ritmo marcado; assim como não escapa a poesia da rua, o gosto pelo nonsense, via poesia do absurdo da tradição popular de um Zé Limeira, do que pode ser exemplo – com a diferença de serem aqui altamente elaboradas – algumas imagens de textos como A palavra Zero e O terminal.</p> <p style="text-align: justify;">Ainda nessa translação entre popular e erudito, tradição e modernidade, sobrepõem-se os esquemas rímicos tradicionais, a estrofação e os ritmos regulares, sempre às voltas da redondilha. Quando esse padrão é rompido, seja por metros mínimos, seja por medidas de exceção ou por deformação rítmica, faz-se por alguma exigência epidítica, sem perder, contudo, aquela cadência aprazível que caracteriza o ritmo em poesia tradicional. Essa aparente incongruência, ao tempo em que infunde traços da versificação moderna e alivia certos tons decorativos e ofuscamentos das imagens, serve também para suavizar a razão dubitativa que comanda a obra, num esforço de ordenação de sentido em linguagem menos extravagante que a das perquirições semânticas e jogos de argúcia. Ainda assim, são as perquirições compostas à base de diáforas, paradoxos e outras figuras de estilo clássico que dão a feição geral da obra: os textos mais expressivos são organizados a partir de uma armação básica, silogística, cujas premissas figuram – via de regra –, a primeira como afirmação contundente; a segunda como dubitação ou adversão que contém ou explica o sujeito da conclusão e esta, como definição ou conceito que procura garantir a validade do raciocínio. Sirva-se de exemplo os quatro primeiros dísticos de A palavra falta, os poemas A outra sede, Recado, O terminal, Figuras, e tantos outros como Ritual do fazer inútil, em que as afirmações, adversões, definições e explicações se alternam no corpo do texto. </p> <p style="text-align: justify;">Em alguns poemas, além dessa arquitetura interna, notam-se certas relações de conjunto como se os textos resultassem de estudos ou variações de um mesmo processo, até chegar à versão que se imagina definitiva. É o que se observa, por exemplo, em poemas como O olho, O anel, A palavra seca e A minha chuva ou no conjunto de textos que dialoga com o já citado A palavra falta. É o caso também de Penúltimo cogito, uma síntese do esquema argumentativo geral da obra e releitura do poema Cogito de Torquato Neto, a partir do qual revisita-se alguns momentos da lírica e da música popular, ora para assenhorear-se, ora para contra-dizer pontos de vista aí expressos, mas em todos os casos evidenciando influências literárias e culturais. Nesse texto, tendo como pano de fundo a imagem desfolhada do anjo torto e louco do tropicalismo, reúne-se numa rede de sugestões interdiscursivas de diferentes níveis dialógicos toda uma plêiade que vai de Augusto dos Anjos a Chico Buarque de Holanda, de Tom Jobim a Tobias Barreto, passando por Francis Hime, Manuel Bandeira, Dante, Goethe, para ficar apenas no universo da poesia e da canção popular.</p> <p style="text-align: justify;">O poema de Torquato e sua inserção no livro póstumo Os últimos dias de Paupéria (1973) parece sinalizar, por alusão, para Gli ultimi giorni di Pompei (1834) de Edward Bulwer-Lytton (1803-1873) – que narra, num cenário de destruição, a vingança pessoal de um legionário romano contra tudo e contra todos – o desregramento do indivíduo por não se sujeitar ao convívio com o que lhe parece torpe, paupérie e insignificante. Mas tudo lhe parece torpe e insignificante e pobre e vilipendioso. E tudo são cismas que levam ao emparedamento existencial e à impossibilidade de reconciliação com o mundo e com a vida que se permite apenas viver. Enquanto o Cogito de Torquato enuncia contraditoriamente a tranquilidade, o despedaçamento do sujeito e a certeza do fim, como sugere o verso Eu sou como eu sou, quatro vezes reiterado e seguido de agora, presente e vidente que se pode traduzir por um “agora” in perpetuum; não há neste A palavra falta qualquer ímpeto destrutivo, apesar das sugestões de falta e das emoções retorcidas. Se o Cogito aponta sempre para a verdade refletida no homem, cuja excitação existêncial (emoldurada nas medidas do impossível) pressupunha o ato extremo e o bilhete de 10 de novembro de 1972, as proposições de A palavra falta e especialmente do Penúltimo cogito resultam quase que exclusivamente do traço lúdico da arquitetura da linguagem; são produto da imaginação caprichosa e do estilo labiríntico e perifrástico do artista.</p> <p style="text-align: justify;">No entorno temático deste poema, que por sua vez orbita à volta de outros tantos, há uma série de textos que indagam sobre a ausência, a carência, ou o lado aberto, insondável, de todas as coisas. Essas relações ora traduzem-se diretamente como Cogito, ora compõe dilaceramentos, dando transcendência a fatos ou situações a partir de proposições dialéticas e suturas sintáticas de noções adversas como dentro-fora, sempre-nunca, tudo-nada, sujeição-libertade, além do uso exuberante de expressões como outro, outra, lado, parte e conjunções como ou e mas. Tudo, como se pode ver, uma semeadura para as antinomias e distorções violentas, arcabouço retórico e razão persuasória.</p> <p style="text-align: justify;">Como o livro se constrói sob a égide de um cogito, não há, pois, como esquecer Descartes, para quem o procedimento dubitativo serviria ao pensar e, por conseguinte, mostraria que o sujeito é uma necessidade do conhecimento. Por isso e com isso, refuta as teses de que a sensação possa servir de substância para o conhecimento e firma a certeza do pensamento, mostrando – como corolário da verificabilidade – a necessidade de intuir, num processo uno, o pensar e o existir. Daí a substância que pensa: eu penso, eu existo. Mas se o filósofo investe no Princípio da dúvida, entendido como preceito ou método, e por meio dele procura fundamentar uma razão que possa conduzir à verdade, o poeta parte da dúvida para nela permanecer. O argumento utilizado pelo filósofo na tentativa de fundamentar sua Teoria do Conhecimento é capturado pelo poeta como intrincado processo retórico que não pretende, de fato, formar redes argumentativas ou estabelecer-se como um paradigma da razão. Se na filosofia visava-se a um fundamento que fosse o mais evidente possível, a obra em questão funda-se em dúvidas às quais se atribui valor retórico-expressivo a fim de validá-las como sistema argumentativo em que a linguagem poética é acrescida das funções de persuasão e perquirição nocional, mesmo tendo sido gerado em pleno lusco-fusco da memória criativa. O teor poético-persuasivo e inquisidor desse sistema que se vai gerando no livro vem, então, dos jogos silogísticos, mas também das reiterações, das antanácleses, das rimas abundantes, do uso do heptassílabo e seu poder de fluência rítmica, a ponto de se poder dizer aqui, pensando em Jakobson, que o som pode ser entendido como ecos do sentindo. E, dada a reiteração dessas camadas de sentido e também dos procedimentos expressivos, pode-e afirmar que a única certeza do autor é a de que não pode ter dúvida de que duvida do presente e da tradição, convidando-nos a observar no próprio objeto criado as ranhuras do processo criativo, como se pretendesse não apenas reordenar a natureza, mas mostrar as suas mãos sujas do barro de modelagem; em outras palavras, as superações e continuidades estilísticas e conceptuais de suas fontes: às vezes, gestos sublimados; outras – com certa violência – apagamentos, rasuras, borrões sobre a presença do outro.</p> <p style="text-align: justify;">Para encerrar, vale retornar ao Penúltimo cogito e sublinhar o que temos chamado de medo e indecisão caracterizadores do cogito poético definidor do livro e como esse aparente lapso metodológico está sintetizado no adjetivo que compõe o título do poema. O emprego do adjetivo indica uma atuação inconclusa e de certa maneira modalizada pelo medo ou imprevidência. Ao tempo que indica a possibilidade da experiência do cogito ser repetida, não esconde também a idéia de que a atividade psíquica e a consciência possam ser paralisadas. Usada como recurso para minimizar o tom fatalista do Cogito de Torquato Neto, e matriz primeira do Penúltimo cogito, essa indecisão pode ser exemplificada também pela mudança do tempo verbal tomada de empréstimo à canção João e Maria , de Sivuca e Chico Buarque eleita como segunda matriz. Veja-se que em vez do presente, utiliza-se o pretérito imperfeito estilizando-se os versos e imagens da canção: o presente agora é neutralizado pelo imperfeito era rompendo-se o caráter linear e sintagmático do discurso para desencadear o efeito poético. No Penúltimo cogito, no entanto, o poeta vale-se dessa oposição de maneira afirmativa, epistêmica, anulando quase por completo o caráter fabular do texto de partida, como forma de modular seu discurso ao estilo das demais fontes: Torquato, Alphonsus de Guimarães, Tobias Barreto, etc., tangenciando desde a as contradições barrocas, o espírito romântico condoreiro recortado e polido por ilustração clássica, o mito da origem, em Ulisses, de Fernando Pessoa até o fatalismo agônico e radical de um Augusto dos Anjos. Resulta dessa modulação, por exemplo, a referência ao Monólogo de uma sombra, infundindo no poema o desespero radical do poeta paraibano. Sou uma Sombra! Venho de outras eras,/Do cosmopolitismo das moneras... diz o autor de Eu, ao que Eduardo Martins responde “eu não sou”, para logo a frente, num jogo entre a realidade e a imagem, entre cultista e conceptista, capitular: </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify; padding-left: 120px;"><span style="line-height: 1.3em;">nem sei se sou quando era</span><br /><span style="line-height: 1.3em;">do cosmopolitismo das moneras</span><br /><span style="line-height: 1.3em;">de outras eras</span><br /><span style="line-height: 1.3em;">agora ...</span></p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p><span style="line-height: 1.3em;"> </span></p> <p> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;">Ao escrever Agora eu era herói/ E meu cavalo só falava inglês, Chico Buarque instaura em sua canção um espaço-tempo mítico que envolve desde o cavaleiro medieval ao herói da Segunda Grande Guerra, apresentado como o bom mocinho dos filmes de cowboy de orientação norte-americana. Espaço-tempo, enfim da fantasia, das forças diurnas, da claridade que deixa viver sem medo. O Penúltimo cogito, por sua vez, dispensa o espaço-tempo mítico e, mesmo descolando-se do espaço-tempo físico, recupera o tempo lembrado, não exclusivamente para vivê-lo, mas também para questionar a falta de saídas, o emparedamento, seja ele existencial, ideológico, social, estético, ou de qualquer outra ordem. Consciente das influências e compromissada com o presente, a poesia se ressente em faltas e, soturna, aceita seu declínio. Só ela, porém, teria Verdade suficiente para conviver com isso, pois é em sua escola e não na escola dos filósofos, como diz Emil. M. Cioram que se aprende a coragem da inteligência e a audácia de ser nós mesmos. Quando se aprende, só as suas “afirmações” fazem empalidecer verdades como as dos antigos sofistas e, embora o mundo racional não as adote, nunca houve um só pensamento que fosse tão longe como Baudelaire ou que se atrevesse a transformar em sistema uma afirmação fulgurante de Lear ou um monólogo de Hamlet . </p> <p style="text-align: justify;">A audácia do desencontro do ser consigo mesmo, do poeta com seus pares, e o reconhecimento da presença de outras vozes compondo a harmonia de uma partitura pessoal sustentam a modernidade do poeta e seu lócus verdade. Para ele, não há causas a serem defendidas, não há os grandes dramas que dilaceram uma vida, mas um refluxo de tudo, a regurgitação de todas as dores; algumas apenas lidas; outras, vivenciadas e cuidadosamente redesenhadas com latências e cicatrizes novas. Não se trata de mera intertextualidade, mas de estilização sincrética, apropriação e reinterpretação. Não há, pois, um projeto para destronar modelos instituídos. Trata-se mais de uma rebeldia do que de uma rejeição, seja às leis sociais, seja ao que se apresenta nas artes. Todo niilismo temático é puramente retórico e canta-se a rebeldia dos outros, seus ídolos, porque a idolatria é uma das formas de ascender ao paraíso. Sabe, porém, que nem toda reinterpretação reúne em si o novo e o bom, e nesse particular parece atento à lição de Edgard Allan Poe, sobre a originalidade: mais afeito à negação que à invenção, o valor de uma obra, sugere o autor da Filosofia da composição, resultaria da sua capacidade para equacionar a resistência da poesia à poesia. Entre nós, Mário de Andrade já havia dito no Prefácio Interessantíssimo que a modernidade não prescinde dos valores do passado. Ser livre, dizia, é poder optar, até mesmo, por não ser livre e uma das formas de fazer isso é se jogar no torvelinho das formas, como faz E. Martins. Como se vê, a poesia também tem o seu afã à perdição. Não há entre ela e a esperança qualquer impulso de compatibilidade, assim como não se pode perguntar ao poetas, vítima de uma ardente decomposição , como experimentam a vida, se vivem e compõem graças à morte e ao que se perde. A poesia, ainda assim, insiste como criação. Em crise desde o romper da modernidade, sua ilusão de permanência está em escavar o próprio túmulo e catalogar os próprios ossos. Não por ócio.</p> <p style="text-align: justify;">Está aí, portanto, o teor de modernidade da poesia vigorosa que Eduardo Martins nos apresenta.</p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;">DE ONDE VEM A POESIA<br /><span style="line-height: 1.3em;">a poética do espaço em Manuel Bandeira</span></p> <p style="text-align: justify;">Osvaldo Duarte</p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: right;">O espaço<br /><span style="line-height: 1.3em;">é o meio pelo qual a posição das coisas<br /></span><span style="line-height: 1.3em;">se torna possível.</span></p> <p style="text-align: right;"><span style="line-height: 1.3em;">Merleau-Ponty </span></p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;">Há um princípio básico em poesia: todo verdadeiro poema trata em síntese de si mesmo, no sentido de que, revolvendo a linguagem, é sempre uma provocação à história da literatura. Apontar para o próprio sinal, signo ou razão daquilo que se inscreveu como entalhe, traço do verso ou estilo de si mesmo é delimitar no vazio o espaço da arte. Não se trata, contudo, de circunscrever. Esta última ação se limitaria com o ato de falar sobre o mundo, longe, portanto, do ato de falar o mundo, que só se realiza como informação estética: processo que se opera na contracorrente entre o fazer e o desfazer a realidade pela linguagem, sem contudo, nunca se desligar do mundo completamente. É a partir desse princípio, considerando que a elaboração poética é o estado ou nível de linguagem em que o signo supera o limite da simples representação, que José Eduardo Martins de Barros Melo pretende considerar em seu livro o modo como se intermedeiam o signo e o referente na obra de Manuel Bandeira, seja o referente apoiado no mundo físico, seja com base no mundo psíquico ou simbólico.</p> <p style="text-align: justify;">O procedimento adotado é mostrar ao leitor de Bandeira e a quem se interesse por literatura ou por problemas de linguagem como a informação estética não se desfigura, mesmo quando o poema, assentado em motivações externas, se mantém num lusco-fusco entre metáfora e símbolo do cotidiano. Tenta mostrar, sobretudo, o modo como se mantém como estrutura em aberto, como processo permanente de enunciação e como aprendizado lúdico e errante do mundo e da poesia. A lição que fica, desde o início, é a de que a linguagem poética, intransitiva, e parcialmente autônoma, transborda sobre si mesma, tomando os espaços da memória e os caminhos do mundo. É dessa maneira que José Eduardo Martins de Barros Melo convida o leitor a perceber como a poesia diz por imagens, mesmo que precise às vezes pular os muros que a isolam na idealidade, precise descer ladeiras e enlear-se ao mangue ou às notícias de jornal. José Eduardo sabe que no caso de Manuel Bandeira é necessário apreender os espaços, sejam eles psicológicos, sejam sociais, sejam estáticos ou dinâmicos, sejam conceituais ou simbólicos. Sabe que o poeta vale-se desse conhecimento para organizar uma poética, que por sua vez, constitui-se como se tentasse dar forma a sentimentos corredios, que se perdem nas ladeiras de pedra do Recife, nos cais do mundo, na solidão de um universo que se evadiu num peito eternamente tísico. Por isso se preocupa em mostrar o poeta em seu ofício de reunir os incontáveis fragmentos do mundo e do próprio eu. Descobre, então, que em Manuel Bandeira o mundo do desterro são fragmentos de um tempo-sem-tempo, futuro e passado anacrônicos; e os desejos: imagens e espaços, perdas e fragmentos do que nos foge, e cuja fuga alimenta a poesia e o autor.</p> <p style="text-align: justify;">É assim que retoma, com o cuidado necessário, o tema do sentimento de frustração, um dos motivos obsedantes do poeta. Mostra, por exemplo, como a disposição afetiva para a frustração está ligada não apenas à evasão, mas participa da obra como equação entre a intenção literária e a estrutura carnal do autor, estrutura de estilo ou produto de uma pulsão de espraiamento por novas dimensões. A partir dessa visão é possível compreender a sede por múltiplos espaços e a sua funcionalidade como elemento da estrutura, dadas as relações que se estabelecem entre o sujeito lírico e o universo das formas. É assim que José Eduardo Martins de Barros Melo vai desvelando aquilo que para Manoel Bandeira são os esconderijos da morte, a perscrutação ou encontro silencioso com o mito, os espaços do amor e da vida, e, por fim, o espaço da poesia intangível. Veja-se por exemplo o seu modo de explicar as questões em torno do Vou-me embora pra Pasárgada.</p> <p style="text-align: justify;">Quanto à composição e à mensagem, já que é do entrelace dessas categorias que vislumbra a função estética, o crítico se preocupa em mostrar como o poeta se alimenta do seu próprio estranhamento diante das coisas, para transubistanciá-las. E é dessa trama, armação que parece escondida sob o vazio, ou aquilo que não vemos, porque nos confunde e nos cega pela sua simplicidade, que Eduardo Martins de Barros Melo vai buscar também o alimento da sua crítica. Investiga o modo como as notações de espaço são transpostas em imagem, experienciando as formas, os laivos de memória, os fragmentos de realidade dissolvida e recomposta pela linguagem. Ao utilizar-se desse mecanismo, valoriza sabiamente a simulação e o jogo de tensões. Trabalha no limite da incerteza, no limite da provocação do sonho e da memória, ao incorporar, como um cronista do mundo interior e não apenas como analista, os olhos com os quais o poeta vê e compõe seu mundo. Procura demonstrar, então, como se se tratasse de dois movimentos convergentes, o princípio de estruturação do pensamento poético de Manuel Bandeira. De um lado, uma inteligência descritiva a serviço da qual o poeta se vale dos artifícios da narratividade para organizar a emoção, traduzindo-a normalmente com certa atmosfera de alumbramento. Por outro lado, o esforço para mostrar uma acuidade expressionista que tende a reformar a realidade com sentimentos e percepção intensa e direta, gerando um espaço de reações subjetivas, com forte domínio sobre a razão.</p> <p style="text-align: justify;">É pertinente dizer, portanto, que o crítico projeta seu trabalho identificando textos em que o espaço físico age sobre o sujeito e textos cujo movimento construtivo sugere a supremacia deste sobre o espaço. O resultado é um mapeamento da realidade em três ângulos distintos, quais sejam: simulando imparcialidade, colocando se como partícipe, e à distância, quando a ausência física transforma-se em presença emotiva pelos ingredientes da evasão. Segundo essa ótica, a obra de Manuel Bandeira traduziria uma certa coerência entre os elementos do cotidiano e o espaço da subjetividade, uma “simbiose entre o aberto e o fechado, a ausência e a presença”, o mundo e a intimidade do eu. Percebe-se, então, que o objetivo do crítico é estudar a configuração de uma poética do espaço como estrutura de estilo, mostrando ao leitor o modo como ela traduz-se em signo motivado. Com isso, incorpora-se à vertente que compreende as notações do espaço como elemento funcional, modelador da manifestação lírica, em Bandeira, ora identificada com a paisagem observada, ora iconizando as formas e espaços em que se move o sujeito. Giovanni Pontiero já apontara em A cinza das horas a correspondência entre a natureza e o universo da subjetividade; Davi Arrigucci já falara da imaginação poética como faculdade plástica e estruturadora, capaz de dar unidade ao diverso, operando espacialmente uma nova harmonia das imagens, ao que José Eduardo Martins completa ao afirmar que Manuel Bandeira esteve atento à mobilidade do mundo, sabendo desentranhar do cotidiano a matéria de sua poesia, na medida em que reconhece intimamente o seu território e recorta, “na esfera da subjetividade, a sua dimensão objetiva”.</p> <p style="text-align: justify;">Estudar o espaço dessa maneira, isto é, sem decair no “tematismo”, é vasculhar esconderijos, o que se esconde por baixo dos tapetes, os alicerces soterrados nos bastidores da criação. É perscrutar uma didática do poema e também uma provocação ou falta de decoro contra o mito do poeta, pois desnuda os atos íntimos, compromissos furtivos e acordos fraudulentos diante da folha em branco. É re-flexão, um voltar-se sobre o que ficou por detrás: as imaginações em desespero, as fugas sub-reptícias, “as rudezas vacilantes do pensamento” como disse Allan Poe. Nesse sentido, o interesse do livro de Eduardo Martins está em revelar não apenas o poder das palavras na obra de Manuel Bandeira, mas o poder do poeta sobre as palavras. Sabe que uma das funções da crítica é ler no poema o que ele representa de auto-reflexão, é assuntar os ruídos do espaço lírico, a auto-regulam no interior mesmo da mensagem. É assim, pois, que se debruça sobre a influência do espaço físico sobre o sujeito lírico, mostrando, sobretudo a astúcia de linguagem, capaz de absorver e remodelar a paisagem. O que se vê, por fim, é a demonstração do movimento no interior da caminhada: os lapsos e intervalos, a hesitação entre o dito e o sugerido, o que foi visto e o que é imaginado, um movimento ou esforço para desfazer o labirinto interior por meio do labirinto da escritura. Nesse sentido, diria com Mikel Dufrenne que a reflexão poética faz do mundo da poesia uma poesia do mundo, evocando um mundo em que a poesia tem um lugar como força de natureza, albatroz, barco ébrio ou cisne. Com efeito, José Eduardo Martins de Barros Melo demonstra o movimento caminhando: não procura dizer de que modo a poesia é possível, mostra pertinentemente como ela é, e a poesia é primeiramente o mundo.</p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: justify;"> </p> <p style="text-align: right;"> Osvaldo Copertino Duarte</p>